As torres do World Trade Center (WTC), um dos prédios-símbolo de Nova York, foram reduzidas a pó ao entrar em colapso durante os atentados do 11 de Setembro de 2001. No momento em que os 110 andares da Torre Norte desabaram, deixando milhares de mortos, Genelle Guzman-McMillan descia a escada de incêndio e ainda tinha 13 andares pela frente até que pudesse deixar o prédio. Foram mais de 26 horas presa aos escombros sem poder se mover e implorando por uma segunda chance. Às 12h30 do dia seguinte, um improvável final feliz: Genelle se tornava a última sobrevivente do pior ataque estrangeiro em solo americano da história dos EUA.
Como ela, apenas outros 19 não perderam suas vidas durante o colapso das chamadas Torres Gêmeas do WTC, responsável pela maior parte das mais de 2,7 mil mortes contabilizadas naquele dia apenas em Nova York. Para Genelle, o alívio do resgate chegou acompanhado de uma série de questionamentos: por que enganou a morte? Por que as amigas que desciam a escada de incêndio ao seu lado não tiveram a mesma sorte? Por que tantos inocentes tiveram de morrer?
Para todas as perguntas, ela escolheu uma única resposta: Deus.
“O 11 de Setembro me ensinou que nunca estamos no controle. Estou aqui para provar que nada acontece no nosso tempo, tudo é no tempo Dele”, afirmou Genelle, hoje com 40 anos, durante entrevista ao iG em sua casa em Long Island, no Estado de Nova York. “O que Deus escolheu para nós é o que acontecerá. Não podemos questionar o que Ele faz.”
Nos dez anos que se passaram desde o 11 de Setembro, Genelle não buscou ajuda psiquiátrica para vencer a “culpa de sobrevivente”. “A religião foi minha terapia”, explicou.
Quando ainda estava presa aos escombros, decidiu unir-se à Brooklyn Tabernacle, uma igreja evangélica de Nova York que havia visitado antes dos ataques. Mas até o dia fatídico sob os destroços, Genelle não se sentia pronta para mudar seu estilo de vida: apaixonada por dança desde criança, ela conta que passava noites inteiras em casas noturnas, vestida com roupas provocantes e sempre com um drinque nas mãos.
Foi o sonho de ser dançarina que a levou a deixar o país onde nasceu, Trinidad e Tobago, no Caribe, para tentar a sorte nos Estados Unidos. Genelle foi criada em uma família católica, a menina mais nova dos 13 filhos de uma dona de casa e um motorista de caminhão que prestava serviços ao governo. Enquanto imitava os passos de Janet e Michael Jackson na sala de casa, driblando as rígidas regras do pai, ela se convencia de que um futuro como celebridade passaria obrigatoriamente por Nova York. “Queria ser grande”, afirmou. “Queria que meus colegas de escola dissessem: ‘Nossa, olha aonde a Genelle chegou!’”
Ela também queria independência e uma vida melhor para a filha, Kimberly, na época com dez anos, que ficou em Trinidad com o pai, Elvis. Apesar do remorso por deixar a menina para trás, Genelle se mudou para Nova York em 1999, pouco depois da morte da mãe, vítima de um câncer de ovário. Hospedada por familiares – irmã, sobrinhas e primos que já moravam na cidade –, ela começou a procurar trabalhos como dançarina, mas logo percebeu que mesmo em Nova York o sonho continuava distante. “Tentava conhecer pessoas, mas sempre me pediam para preencher fichas e contratar agentes”, contou. “Não sabia que seria assim, que teria de pagar para talvez receber um telefonema.”
Após alguns empregos como babá e secretária, em dezembro de 2000 ela respondeu a um anúncio de jornal e foi contratada como assistente de um dos gerentes da polícia portuária de Nova York. Quando soube que o escritório ficava no 64º andar do WTC, Genelle vibrou. No primeiro dia de trabalho, pegou o elevador, correu à janela e sentiu emoção ao ver, lá do alto, o centro de Manhattan.
Também em 2000, durante uma celebração de carnaval em Trinidad, Genelle conheceu Roger, que como ela nascera na ilha e se mudara para Nova York. Os dois começaram a namorar e logo passaram a viver juntos. À noite, Roger acompanhava a namorada nas festas; pela manhã, fazia com ela o trajeto de trem entre o Brooklyn, onde moravam, e o centro de Manhattan.
Na manhã de 11 de Setembro, uma terça-feira de sol, Roger teve um compromisso mais cedo e Genelle pegou o trem sozinha. Enquanto passava distraída pelas estações, lembrava-se de cada momento do fim de semana anterior, marcado pela reconciliação do casal após 15 dias de separação. Genelle também estava ansiosa para chegar ao escritório e reservar passagens para Miami, onde curtiria uma festa popular com Rosa González, uma colega de trabalho, no mês seguinte. “Era um dia lindo para mim”, definiu, abrindo um sorriso triste.
Estrondo
Eram 8h05 quando Genelle entrou na Torre Norte do WTC, cerca de 40 minutos antes de o primeiro avião atingir o prédio mais de 30 andares acima de onde ela estava. Após comprar um bagel e um chocolate quente, Genelle sentou-se à mesa e começou a falar com a amiga Susan Miszkowicz quando um forte tremor e um barulho alto encerraram a conversa.
Susan se apoiou na mesa. Genelle se lembrou de um terremoto pelo qual passara anos antes em Trinidad. As duas trocavam olhares confusos e assustados enquanto tentavam encontrar uma justificativa para o maior estrondo que já tinham ouvido. “Aquele ruído, aquele ‘bang’… Não tinha acontecido nada por perto, então de onde poderia ter vindo?”, questionava.
Elas correram juntas até a janela, sem conseguir ver nada além de papéis voando. Havia cerca de 50 funcionários da polícia portuária no andar de Genelle e muitos começaram a deixar o prédio, mas ela esperou que as luzes se apagassem ou que soasse o alarme de incêndio, como aprendera nos treinamentos de emergência.
O movimento era grande. Colegas de Genelle pediam orientações à direção da empresa enquanto outros tentavam falar com familiares, apesar das linhas congestionadas. Ao telefone, Rosa chorava dizendo que um avião tinha batido no prédio, informação que Genelle considerou “surreal” e na qual só acreditou quando a TV da sala de conferências foi ligada, mostrando as impressionantes imagens assistidas em todo o mundo. O que se seguiu, segundo Genelle, foi uma “montanha-russa emocional”. “Pessoas choravam, os telefones não funcionavam, não conseguíamos uma resposta definitiva sobre o que fazer”, contou, com expressão séria. “Eu lembrava da minha filha e pensava: ‘Meu Deus, vou morrer em Nova York.”
Por telefone, Roger e outros familiares imploravam para que Genelle deixasse o prédio. Ela sentia o medo e a ansiedade crescerem, mas achava que não seria capaz de fazer o trajeto sozinha e preferiu esperar a decisão de funcionários mais experientes. Um deles, o engenheiro elétrico Pasquale Buzzelli, 34 anos, decidiu verificar a situação da escada de incêndio. Quando viu que havia iluminação e pouca fumaça, ele incentivou o grupo a desistir de esperar por ajuda. Após duas votações, as 15 pessoas que ainda estavam no 64º andar chegaram a um consenso e começaram a descer depois de mais de uma hora do choque do avião.
Paredes explodindo
Pasquale liderava o grupo. Genelle descia os degraus de mãos dadas com Rosa, que ainda chorava. Susan ia atrás. Todos se tranquilizaram ao passar por dois bombeiros que seguiam no sentido contrário, subindo as escadas para ajudar na retirada do prédio. “Talvez as coisas não estejam tão ruins lá fora”, pensou Genelle, sem ter a dimensão do quão trágica seria aquela terça-feira.
Enquanto descia os degraus, Rosa insistia para que a amiga descalçasse os sapatos de salto alto, mas Genelle se recusava a admitir que sentia dor nos pés. “Eu dizia: ‘Se tirar os sapatos, o que vou fazer quando chegar lá fora? Meu namorado está me esperando, vai ser meu dia de folga’”, relembrou, rindo de si mesma.
Ela só deu o braço a torcer no 13º andar, quando se apoiou no ombro de Rosa e se abaixou para descalçar os sapatos, enquanto a amiga ria e brincava: “Não falei?”
Foi a última vez que Genelle ouviu a voz de Rosa. Antes que pudesse levantar o corpo, seu pesadelo começou. “Tudo ficou escuro e comecei ouvir as paredes explodirem”, descreveu, ainda impressionada com a experiência pela qual passou. “Houve barulho, escuridão, poeira. Tudo estava caindo.”
O prédio estava desabando.
Preparada para morrer
Genelle ainda segurava a mão de Rosa e, antes de cair, viu a amiga correr para trás, como se quisesse subir os degraus da escada. Ao tentar se levantar, Genelle recebeu um novo golpe e voltou ao chão. Dessa vez o tremor era muito maior do que o de um terremoto e os destroços continuavam vindo em sua direção, com cada vez mais força. Sem saber o que fazer, ela colocou as mãos sobre a cabeça, como se formasse um casulo, e esperou. “Fechei os olhos e fiquei parada esperando tudo acabar”, contou. “E quando acabou, houve um silêncio mortal.”
Ela ouviu um homem gritar por socorro duas vezes. Não o ouviu mais. Ela também gritou por ajuda e para saber se Rosa estava bem. Não houve resposta. Dos 15 funcionários que desciam as escadas, só mais um sobreviveu ao colapso das torres: Pasquale Buzzelli, que caiu em cima de uma pilha de destroços e deixou o local andando, com a ajuda de bombeiros.
Genelle tentava se mover, mas não conseguia: deitada do lado direito do corpo, ela tinha a cabeça presa entre blocos de concreto, as pernas viradas e presas em parte da escada, os olhos cheios de poeira e incapazes de definir, em meio à escuridão dos escombros, se era dia ou noite. A mão esquerda tinha algum espaço para fazer curtos movimentos, mas só sentia mais destroços.
Ela não chorava, apenas pensava: na mãe, na filha que deixara para trás, no namorado, nas pilhas de destroços que teriam de ser removidas até que alguém pudesse chegar a ela. Se ouvia o som de máquinas ou pessoas falando em walkie-talkies, ela gritava e tentava fazer barulho, até que a volta do silêncio a fizesse desistir.
Não sentia fome, apenas sede. Algumas vezes urinou em si mesma. Sentiu os dentes rangerem e o corpo tremer de frio para depois quase não suportar o calor provocado pelos incêndios próximos a ela. A todo momento fechava os olhos, torcendo para que não pudesse abri-los novamente. “Sabia que ninguém me encontraria porque 100 andares tinham caído sobre mim. Então fechava os olhos e pedia para não acordar, para morrer sem dor”, afirmou.
Mas Genelle sempre acordava, e em determinado momento prestou atenção ao fato de que ainda respirava. “Se tudo isso aconteceu e estou respirando”, disse a si mesma, “acho que não vou morrer”.
Genelle não queria morrer. Presa aos escombros, ela desejava um futuro ao lado da filha enquanto repassava as lições da mãe e pensava sobre o que ela faria. Sem saber rezar, começou a conversar com Deus e a implorar por uma oportunidade de corrigir seus erros. “Percebi que precisava mudar minha vida, tudo aquilo que planejava para mim mesmo sabendo que era errado – sair, beber, usar roupas provocantes, expor meu corpo aos homens”, afirmou. “Minha mãe dizia que aquilo não era vida, mas era a minha vida. Então comecei a fazer promessas a Deus. Disse que, se ele me salvasse, se me tirasse dali, passaria a fazer sua vontade.”
Milagre
O resgate de Genelle durou cerca de três horas. Segundo ela, o milagre começou quando tateava o concreto com a mão esquerda e, de repente, sentiu que alguém a segurava. “Ele pediu para que eu não soltasse, disse que tudo ficaria bem e que seu nome era Paul”, afirmou Genelle, que guardara o nome porque planejava conhecê-lo quando o pesadelo terminasse.
Enquanto segurava sua mão, Genelle ouviu homens conversando e gritou para chamar sua atenção. Eles não podiam vê-la, mas insistiram na busca. Mais tarde, Genelle saberia que os resgatistas – Brian Buchanan, um ex-militar, e Rick Cushman, integrante da Guarda Nacional – tinham sido atraídos ao local onde ela estava pelo faro de um cachorro, Trakr, e pelo uniforme de um bombeiro morto que reluziu em meio à poeira e aos escombros.
Para tirar Genelle dali, a equipe de resgate cortou pedaços de aço e moveu enormes blocos de concreto com cuidado. Enquanto era transportada em uma maca até a superfície, ela perguntava se ainda teria de esperar muito. O sol fez seus olhos arderem, mas o tempo todo ela sorria.
Ao contar sua história ao iG, Genelle ressaltou que, quando chegou à ambulância, respondeu corretamente todas as perguntas feitas por um paramédico. Com isso, tentou evitar qualquer dúvida sobre sua lucidez que pudesse ser provocada pelo fato de que Paul, o homem que segurou sua mão, nunca apareceu. Um a um, todos os resgatistas disseram que não havia nenhum Paul na equipe.
Ainda assim, ela tem certeza de que o nome e sua versão da história estão corretos. “Paul era um anjo, o milagre que pedi”, afirmou, confiante. “Sei que estava consciente o tempo todo. Sei que podia ouvir tudo e sei que alguém segurava minha mão. Paul estava lá.”
Cicatrizes
Foram seis semanas de internação e quatro cirurgias na perna direita. Horas após ser internada, deitada em uma cama do hospital, Genelle recebeu a visita de Roger, que já havia perdido a esperança de encontrá-la. Ao entrar no quarto, ele mal podia reconhecê-la: seu rosto estava inchado, os olhos estavam roxos e o corpo tinha queimaduras e poeira por toda parte. Sem conter as lágrimas, ele se aproximou da namorada e disse, ao ouvido: “Por que você não saiu do prédio quando eu pedi?”
Foi a primeira vez que Genelle chorou, segundo disse ao iG. Em sua autobiografia, porém, ela diz ter chorado outras duas vezes: quando viu as imagens do ataque na TV da sala de conferências e em um momento de desespero durante o tempo que passou presa aos escombros.
Parentes se preocuparam ao ver que Genelle não chorava durante sua recuperação e insistiram para que ela visse um terapeuta. Ela concordou, mas desistiu logo após a primeira sessão. Seu objetivo era se dedicar à fisioterapia, o que exigiu determinação. Médicos chegaram a dizer que Genelle teria de amputar a perna, depois garantiram que ela usaria uma muleta pelo resto da vida. Meses depois, porém, ela andava sozinha. Os movimentos não são tão ágeis como antes, mas ela ainda pode dançar.
É quando olha para a perna ao se vestir para o trabalho ou durante o banho que Genelle se lembra do 11 de Setembro. Para esconder as grandes cicatrizes e evitar perguntas ela evita usar saias e nunca esquece da meia-calça. “Não quero que tenham pena de mim, nem quero explicar tudo”, disse. “Não saio por aí dizendo que sou a última sobrevivente, mas quase todos os dias lembro do que aconteceu.”
Alçada à fama, ainda que por motivo diferente do que havia sonhado, quando voltou para casa Genelle recebeu inúmeros pedidos de entrevistas e até planejou seu casamento com Roger, celebrado em 2002, com a ajuda de uma emissora de TV e uma revista que noticiaram o evento. Neste mês, lança nos EUA “Angel in the Rubble” (“Anjo nos Escombros”, em tradução livre), autobiografia que a levará a turnês promocionais na Austrália e na Nova Zelândia. Mas Genelle garante que já não quer ser “um ídolo como Beyoncé”, mas, sim, ser famosa por causa de Deus. “Quero mostrar que há esperança, que as pessoas não devem desistir, que devem continuar rezando e acreditando”, afirmou.
Acostumada a contar sua história em visitas a igrejas americanas, Genelle já não chora e sempre consegue manter a calma ao falar sobre o 11 de Setembro. Mas ela não sabe se irá ao Marco Zero (local onde ficavam as torres) para participar da homenagem às vítimas nos dez anos do ataque. Em geral, o aniversário do atentado é um dia de reclusão. Genelle pede folga (ela voltou ao trabalho na polícia portuária dois anos após o atentado), evita assistir à televisão e procura ficar em casa com Roger, as filhas mais novas, Kaydi, 7, e Kellie, 5, o enteado Kadeem, 20, além de Kimberly, 22, que hoje mora com ela.
Algumas vezes Genelle se lembra de como teve sorte e chora sozinha. “Gostaria que não tivesse que ser assim, que tanta gente não tivesse morrido. Mas minha vida não podia ficar nesse clima, então segui em frente e prefiro pensar que coisas boas virão”, afirmou, com ar de tristeza. “Queria que a Rosa e a Susan estivessem aqui”, lamentou, “mas a decisão não cabia a mim.”
Fonte: IG
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